Lamentavelmente, a incúria demonstrada pelas autoridades competentes em salvaguardar este espaço
histórico, tem como resultado este triste espetáculo de abandono e ruína.
Um texto de André Manique
Historiador e investigador de história local
Na zona de
Sintra, à entrada da povoação de Janas, existe um casal, primeiramente
designado de Miguel Joanes, e que posteriormente ficou a ser conhecido por
Casal da Torre. Para ali chegar, segue-se por um caminho de terra batida que
parte da estrada principal, e cerca de uns 100 metros adiante, encontram-se
umas ruínas de uma antiga capela de estilo gótico. A Capela do séc. XV do Casal
da Torre.
Esse casal
pertenceu a Mestre Henriques, um distinto médico que durante o reinado de D.
Duarte, foi físico mor do Reino.
Mestre Henriques
era um grande devoto da Ordem religiosa do Carmo, tratando os Carmelitas com
particular veneração, mantendo estreitas relações com os carmelitas do Convento
de Lisboa, o qual havia sido fundado em 1389 pelo Condestável D. Nuno Álvares
Pereira. Não tendo herdeiros e julgando que o seu casal reunia as condições
para fundar um Convento da Ordem em Sintra, resolveu pedir assim licença ao
rei. Ainda antes de lhe ser concedida a licença régia, a 14 de Novembro de
1436, ergue uma capela, que denomina de Oratório, e que acabaria por se tornar
o primeiro cenóbio carmelita em Sintra. Posteriormente, os monges acabariam por
abandonar o local e instalar-se numa zona sobranceira à serra, próximo de
Colares.
Mas eis, antes
de mais, como nos descreve Visconde de Juromenha esse primeiro local, na sua Cintra Pinturesca:
Foi primeiro fundado este Convento no casal da Torre, antigamente
chamado de Miguel Joanes no termo de Cintra, que pertenceo a mestre Henrique,
physico mór dEl-Rei D. Duarte, o qual tendo
primeiro impetrado licença do dito Rei para a sua fundação, [que lhe foi
concedida por Carta dada em Lisboa em 14 de Novembro de 1436], deixou em
testamento o dito casal, onde já tinha edificado huma Capellinha ou Oratório, á
ordem do Carmo para por sua morte se fundar naqelle logar o dito Convento
deixando por testamenteiro e executor desta sua ultima vontade a D. Fr. João
Manoel, Bispo de Ceuta e Capellão mór.
(Juromenha, 1838, 158)
Mestre Henriques
viria a explicitar no seu testamento que as obras do futuro cenóbio só
continuariam após a sua morte, pois que pelas suas funções e exigentes
permanências na corte, não lhe era possível ausentar-se para o acompanhamento
das mesmas. Acabaria por morrer em 1449, e no ano seguinte, a herdade, os seus
bens e as suas rendas entraram na posse do convento do Carmo de Lisboa, tendo
Frei Constantino Pereira, sobrinho do Condestável D. Nuno Álvares Pereira, sido
escolhido para fundar o novo convento.
Todavia, e como
nos descreve um frade carmelita do séc. XVII, José Pereira de Stª Ana, o lugar
do Casal da Torre em breve se mostrou inóspito, assim
pela esterilidade da terra, só própria de pão, e de gados, como pela falta de
vizinhos, que se podessem aproveitar das doutrinas dos Religiosos (...) [e] por
ser totalmente
desabrigado [pois] nelle reinaõ com irreparavel furia os ventos, que saõ
nocivos á saude (Stª Ana, 1751, II:96).
A construção do
convento, ao tempo reduzida à capela a que Mestre Henriques chamara Oratório e que milagrosamente ainda hoje resiste à irreparável fúria dos
ventos , foi interrompida e, por doação de um terreno,
em 1457, e num lugar chamado Boca da Mata, próximo de Colares, os religiosos
acabariam por erguer e fundar um novo cenóbio, o Convento de Santa Ana do
Carmo, o qual, contrariamente ao primeiro local se encontrava agora (
) edificado em hum sitio ameno, em huma planície na raiz da Serra,
e sobranceiro á Villa de Collares, cercado de frondoso arvoredo. Gosa ao perto
da aprazível vista da varsea, casas de campo, pomares, e quintas revestidas
de copados arvoredos, e mais longe de logares, e casaes, terminado o horizonte
de hum tão variado e deleitavel painel o occeano, cujas vagas prateadas se
estão vendo em distancia quebrar naquellas praias
(Juromenha, 1838, 160-61).
José Alfredo da
Costa Azevedo, ilustre sintrense do séc. XX, que muito batalhou e contribuiu
pela divulgação e preservação do património natural, cultural e edificado da
sua terra, descreve assim o primitivo convento do Casal da Torre aquando da sua
visita, na década de 1980:
Fui ao Casal da Torre, ultimamente, umas duas ou três vezes e tive
ocasião de verificar que ainda existem algumas casas já sem telhado; e na
parede de uma delas ainda se pode ver, reduzida às cantarias, uma longa porta
ogival, a qual se apresenta vedada por uma cancela feita de canas; no interior
vivem galinhas. O casal parece estar habitado e
a presença das galinhas assim o atesta , mas a verdade é que, em qualquer das
vezes que ali fui, não tive a confirmação do facto (Costa Azevedo, 1997, II: 11).
Actualmente o
Casal da Torre encontra-se de facto habitado, com algumas dependências anexas
às sobreditas ruínas, e muito embora a pequena capela já não sirva de
galinheiro, o seu estado de conservação merece especial atenção. Seriam de extrema
importância obras de recuperação neste monumento, um importante elemento
patrimonial sintrense e que a irreparável fúria dos ventos e restantes
elementos naturais poderão condenar para sempre.
Volvidos dez
anos desde que foram escritas estas linhas para um dos capítulos de um trabalho
que efectuei sobre o Convento de Santa Ana do Carmo de Colares e seis desde que
o mesmo foi apresentado no III Encontro de História de Sintra, resolvi ir
visitar de novo o Casal da Torre. Infelizmente o passar dos anos e o fustigar
dos ventos e restantes elementos naturais acabaram por prevalecer. Grande parte
do alçado sul da capela e seu respectivo portal desabaram por completo,
restando apenas parte do alçado nascente e seu portal, muito embora também este
em perigo de derrocada.
Surge-me apenas
terminar este artigo com o parágrafo com o qual terminei o trabalho na altura.
A importância de
um monumento como este vai muito para além da simples valorização
arquitectónica e física. Um monumento surge de uma certa necessidade humana em
secularizar, não apenas os estímulos técnicos, artísticos e estilísticos do
momento, mas também as suas crenças e necessidades de vida, eternizando-se
deste modo às gerações vindouras a cultura e sociedade em que se enquadram. Por
isso a importância do estudo, conservação, e valorização do Património.
Evita-se assim a perda no espaço e no tempo de tudo aquilo que foi vivido,
pensado e idealizado antes de nós.
Via: www.cm-sintra.pt/o-casal-da-torre-em-janas
Fotografias de Manuela Videira e C@rlos Baptista
(Julho de 2016)